quinta-feira, 26 de junho de 2008

"É assim todos os dias."

Um trecho de O Estrangeiro, de Albert Camus:

Ao subir, esbarrei na escada com o velho Salamano, meu vizinho de andar. Estava com o seu cachorro. Há oito anos que são sempre vistos juntos. O cocker-spaniel tem uma doença de pele, acho que é sarna, que lhe faz perder quase todo o pêlo e que o cobre de placas e de crostas marrons. De tanto conviverem juntos os dois, num pequeno quarto, o velho Salamano acabou ficando parecido com o cão. Tem crostas avermelhadas no rosto e o cabelo amarelo e ralo. Quando ao cão, esse assimilou do dono um a espécie de aspecto encurvado, o focinho para a frente e o pescoço esticado. Parecem ser da mesma raça e, no entanto, detestam-se. Duas vezes por dia, às onze e às seis horas , o velho leva o seu cão para passear. Há oito anos que não mudam de itinerário. Eles podem ser vistos ao longo da rue de Lyon, o cão puxando pelo dono até o velho Salamano tropeçar. Então, ele bate no cachorro e o xinga. O cão rasteja de medo e se deixa arrastar. Nesse momento, é a vez do velho puxar. Quando o cão se esquece, torna a arrastar o dono, e é outra vez surrado e xingado. Ficam, então os dois na calçada, e se olham: o cão, com terror, o homem, com ódio. É assim todos os dias. Quando o cão quer urinar, o velho não lhe dá tempo e o puxa, e o cocker-spaniel vai deixando atrás de si um rastro de pequenas gotas. Se, por acaso, o cão faz no quarto, também apanha. Isso já dura oito anos. Celeste diz sempre que “é uma desgraça”, mas, no fundo, ninguém pode saber. Quando eu o encontrei na escada, Salamano estava xingando o cão. Ele lhe dizia: “Imundo! Nojento!” e o cão gania. Eu disse “bom dia”, mas o velho continuava a xingar. Então eu perguntei o que o cão tinha feito. Ele não me respondeu. Ele dizia apenas: “Imundo! Nojento!” Eu o distinguia, curvado sobre o animal, arrumando alguma coisa na coleira. Falei mais alto. Então, sem se virar, respondeu-me, com uma espécie de raiva contida:

- É, ele não me larga. – Depois, foi embora, puxando o animal que se deixava arrastar e gania.

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